GEODIVERSIDADE, CRITÉRIOS DE VALORIZAÇÃO. AMEAÇAS À GEODIVERSIDADE.
“Não estarão o mundo biótico e abiótico inexoravelmente interligados?”
Brilha (s.d 1)
“Assim como uma árvore guarda a memória do seu crescimento e da sua vida no
seu tronco, também a Terra conserva a memória do seu passado, registada em
profundidade ou à superfície, nas rochas, nos fósseis e nas paisagens, registo
esse que pode ser lido e traduzido.”
6º Princípio da Declaração de Digne – Declaração Internacional sobre os Direitos
da Memória da Terra, 1991
“os Homo sapiens sapiens causam, actualmente, uma enorme pressão nos
sistemas de suporte de vida do planeta”
Brilha (s.d 2)
Iniciamos neste espaço a temática geodiversidade, e desde já parece-me premente dar a conhecer que a
importância da geodiversidade (do grego gê, terra + do latim diversitate,
diversidade) não é menor que a
importância da biodiversidade (que analisámos anteriormente), e em 2001 Mick
Stanley afirmava que a “biodiversidade faz parte da geodiversidade”.
A biodiversidade está assente
sobre a geodiversidade, e nesse sentido, “é dependente direta desta, pois as rochas, quando
intemperizadas, juntamente com o relevo e clima, contribuem para a formação dos
solos, disponibilizando, assim, nutrientes e micronutrientes, os quais são
absorvidos pelas plantas, sustentando e desenvolvendo a vida no planeta Terra”.
(Silva, 2008)
Geodiversidade e biodiversidade
dependem uma da outra e interagem mutuamente, procurando o planeta nesse
balanço, um equilíbrio. Se objetivarmos a importância da geodiversidade para o
Homem, facilmente se conclui que este esteve sempre dependente dela, sendo
mesmo determinante para evolução da civilização humana (Pereira et al., 2008).
GEODIVERSIDADE
O surgimento do conceito geodiversidade é relativamente recente, ao longo
dos tempos, a geodiversidade comparativamente à biodiversidade tem tido um menor reconhecimento por parte de políticos, gestores ou técnicos
(Gray, 2004). Aparecendo o conceito
durante a década de noventa (em artigos na Austrália) para descrever a
variedade do meio abiótico, e logo foi seguido em muitos outros países
(Gray, 2004).
Quanto à definição de
geodiversidade, são vários os autores que têm dado a sua contribuição. É possível definir
geodiversidade, segundo Nieto (2001), como o número e a variedade de estruturas (sedimentares, tectónicas,
geomorfológicas, hidrogeológicas e petrológicas) e de materiais geológicos (minerais, rochas, fósseis e solos) que constituem o substrato físico natural de
uma região, sobre o qual assenta a atividade orgânica, incluindo a antrópica.
A geodiversidade definida por Stanley (2004), é o resultado de processos interativos dinâmicos, que envolvem a
paisagem, fauna, flora e as culturas humanas, que ditaram os locais onde as
pessoas se fixaram e desenvolveram aldeias, vilas, cidades, indústrias,
estradas e a forma como os recursos foram utilizados. Nesta conceção de
geodiversidade, as paisagens naturais, compreendidas como a variedade de
ambientes e processos geológicos, estariam relacionadas ao seu povo e à sua
cultura. Dessa forma, Stanley estabelece uma interação entre a diversidade
natural dos terrenos (compreendida como uma combinação de rochas, minerais,
relevo e solos) e a sociedade, em uma aproximação com o clássico conceito la
blacheano de ‘género de vida’ (Silva, 2008). Segundo Gray (2004), a geodiversidade consiste na variedade de aspetos geológicos (fósseis,
rochas e minerais), geomorfológicos (geoformas e processos) e do solo. Inclui
coleções, relações, propriedades, interpretações e sistemas. Quanto à
definição da Sociedade Real para a Conservação da Natureza do Reino Unido tem
em conta a “variedade de ambientes
geológicos, fenómenos e processos activos que dão origem a paisagens, rochas,
minerais, fósseis, solos e outros depósitos superficiais que são o suporte para
a vida na Terra” (Brilha, 2005).
Apesar de diferenças na abrangência do conceito, salienta-se o facto das
definições apresentadas integrarem no conceito de geodiversidade os seres
vivos. Entendendo-se, que a
geodiversidade não inclui apenas a componente abiótica do nosso planeta mas
também a biótica.
Fonte: Silva, 2008
VALORES ATRIBUÍDOS À GEODIVERSIDADE
A atribuição de quaisquer valores
à geodiversidade, quer sejam intrínsecos, culturais, estéticos, económicos,
funcionais, científicos ou educacionais, deverá
constituir um fundamento necessário para levar a sociedade a agir de modo a
respeitar esses valores, impulsionando desta forma a Geoconservação.
Discutiremos nesta entrada os principais valores atribuídos à geodiversidade:
O valor intrínseco
Este é subjetivo e de difícil
quantificação, porque envolve perspetivas filosóficas, éticas e religiosas (Brilha, 2005).
A ideia de valor intrínseco, no caso específico da geodiversidade, aponta
para um valor próprio, de existência, algo que é inerente aos elementos
abióticos independente de serem úteis ou não para o homem. O valor intrínseco constitui uma rejeição da visão antropocêntrica de
que nada é de um valor a menos que seja de utilidade direta para os humanos e
implica que as coisas não precisam necessariamente da aprovação do homem para
justificar a sua existência (Sharples, 2002). Por mais que um determinado
elemento se repita na natureza, como um tipo de rocha ou uma forma de
relevo, estes nunca serão exatamente iguais, seja pelos processos
envolvidos na sua formação, na maneira como se apresentam, o local em que
ocorrem, as influências que sofrem e que exercem no meio, etc. Neste caso a
justificativa para sua conservação é o facto de tal componente da
geodiversidade ser único e constituir um bom exemplo do seu tipo em determinada
caraterística. Destruí-lo significaria uma grande perda do registo de um
processo evolutivo de milhões de anos, ou, numa perspetiva cristã, algo que
representa uma criação impossível de ser repetida.
Valor cultural
Diferente do valor intrínseco, o valor cultural da geodiversidade é muito
mais facilmente percebido. Este valor é
conferido pelo Homem quando se reconhece uma forte interdependência entre o seu
desenvolvimento social, cultural e/ou religioso e o meio físico que o rodeia (Brilha,
2005). Segundo Gray (2004) estão
incluídos neste valor os mitos e outras explicações com forte expressão mística
ou religiosa associadas a aspetos geológicos, que aquele autor designa por
folclore.
O valor cultural traduz-se num conjunto de aspetos geológicos com cariz cultural
intangível, que possuem ou possuíram no passado, uma especial significação
simbólica ou emocional para a sociedade (Castro, 2006).
Fonte: imagens google (stonehenge)
Valor estético
O valor estético tal como o valor intrínseco é subjetivo e difícil de quantificar,
porque o conceito de ‘belo’ varia de pessoa para pessoa (Brilha, 2005). A experiência de apreciação estética está
muito ligada à sensibilidade do ser humano, o qual capta cognitivamente os
objetos que o rodeiam através dos seus sentidos, manifestando sentimentos de
alegria, de prazer frente a estes, quer sejam de origem humana ou natural,
atribuindo um valor afetivo, um valor estético, de forma a não enxergá-los
somente pela sua utilidade, mas num plano contemplativo. Uma aplicação
prática da apreciação estética é a observação de paisagens naturais, um ato
instintivo e agradável que cada vez ganha mais adeptos.
A natural diversidade de paisagens e de materiais geológicos associados com
o corpo de conhecimentos relativos à história da Terra e aos processos
geológicos potencia o chamado geoturismo.
Fonte: imagens google (grand canyon)
Valor económico
O reconhecimento da importância da
geodiversidade para o desenvolvimento da Humanidade e atualmente para o
progresso da sociedade tecnológica é um conceito a que todos nos habituamos
desde muito cedo. Assim sendo, torna-se compreensível que os materiais
geológicos, rochas, sedimentos, solos, água subterrânea, minerais e mesmo
fósseis, usados como combustíveis ou matérias-primas, tenham um valor económico
bem fundamentado, dependente das forças de oferta e procura existentes no
mercado.
O valor económico é o mais objetivo e de fácil quantificação, uma vez que a
sociedade já está habituada a dar valores aos bens e serviços utilizados.
Fonte: imagens google (diamante)
Valor funcional
O valor funcional reconhece o valor da geodiversidade em seu local de
origem, ao contrário do valor económico, que só confere valor à geodiversidade
após ela ser explorada (Brilha, 2005). O valor funcional tem sido raramente
discutido na conservação da natureza, mas é claro que solos, sedimentos, relevo
e rochas têm um papel funcional de sistemas ambientais físico e biológico. Por
sua vez, podemos reconhecer duas
subdivisões de valores funcionais: a primeira é o valor utilitário da
geodiversidade in situ, ao contrário do valor extraído; e o segundo, refere-se
ao valor funcional no fornecimento de substratos essenciais, habitats e
processos abióticos que mantêm os sistemas físicos e ecológicos da superfície
da Terra (Gray, 2004).
Fonte: imagens google (termalismo)
Valor científico e educativo
O Valor científico e educativo
permite ao homem reconhecer e interpretar a história geológica da Terra,
melhorando a relação entre o homem com a geodiversidade (Brilha, 2005). O ambiente físico é o laboratório para as pesquisas
científicas e por vezes o único local que fornece um teste confiável sobre
muitas teorias geológicas (Gray, 2004). O
valor educativo da geodiversidade está relacionado à educação em Ciências da
Terra e pode ocorrer tanto direcionado ao público formal (ensino básico e
superior) quanto ao público informal
(não escolar).
Fonte: imagens google (trabalhos de campo em geociências)
AMEAÇAS À GEODIVERSIDADE
Não é ao acaso, que a evolução da civilização tem vindo a ser associada ao
uso sucessivo de materiais geológicos, e efetivamente, ao longo dos tempos
tem-se registado uma exploração e dependência humana dos recursos geológicos
(Idade da Pedra, do Cobre, do Bronze e do Ferro; a Revolução Industrial assente
nas enormes reservas de carvão; a dependência dos combustíveis fósseis no
século XX; e atualmente, a “Idade do Silício”) (Pereira et al., 2008). A
subsistência da espécie humana tem obrigado à utilização da geodiversidade, e
em alguns casos à sua destruição (Brilha, 2005). Neste contexto, a maior parte
das ameaças à geodiversidade (tal como à biodiversidade) advém, direta ou
indiretamente, da atividade humana (Brilha, 2005).
O paradigma de desenvolvimento vigente (maior consumo = a maior
desenvolvimento), o crescimento populacional (atualmente existem cerca de 7
biliões de pessoas, em 2050 estima-se que vão existir cerca de 9.2 biliões de
pessoas), a mudança dos padrões de consumo que se verifica, entre outros,
contribuem grandemente para ameaçar a geodiversidade. E se a nossa
trajetória atual de desenvolvimento prosseguir os padrões atuais de exploração
dos recursos, será muito provável que o mundo continue a perder geodiversidade.
Brilha (2005) refere no seu livro “Património Geológico e Conservação: A
Conservação da Natureza na sua Vertente Geológica”, um conjunto de ameaças à
geodiversidade que têm origem antrópica:
Exploração de recursos geológicos
A obtenção dos mais variados materiais geológicos para uso humano,
nomeadamente no nível de desenvolvimento e conforto das sociedades humanas, tem
o seu impacte na geodiversidade, e podem ser de dois níveis: ao nível da
paisagem (exemplo mais comum as explorações a céu aberto), ou ao nível do
afloramento (a atividade extrativa pode consumir objetos geológicos como
fósseis ou minerais; pode destruir formações e estruturas rochosas).
A atividade extrativa “pode ter impacto no decurso normal dos processos
naturais” (Brilha, 2005).
Desenvolvimento de obras e estruturas
A atividade humana utiliza o meio envolvente para 'progredir', logo há um
impacto diário e uma expansão constante da área ocupada, o desenvolvimento da
tecnologia permitiu a construção em altura. Os muitos projetos de expansão
urbana, a construção de vias de comunicação ou de infraestruturas, muitas vezes
não tomam em devida conta a minimização de impactos ambientais. Deste modo, não
é de estranhar que a construção humana esteja presente em áreas muito sensíveis
do ponto de vista patrimonial natural ou cultural, e que poderiam estes ser um
enorme atrativo turístico.
Gestão das bacias hidrográficas
As bacias hidrográficas sofreram com a ação humana nomeadamente para
“regularização de caudais e prevenção de cheias” (Brilha, 2005) um impacto
profundo na geodiversidade, verificando-se uma alteração na “dinâmica natural
dos cursos de água” (ibidem).
Florestação, desflorestação e agricultura
O crescimento da vegetação constitui um fator que oculta as caraterísticas
geológicas de determinada região, porém a desflorestação por via do homem, ou
por via dos incêndios pode provocar erosão. A agricultura dita “tradicional”
não tem impactos relevantes sobre a geodiversidade, mas a agricultura
industrializada (maquinaria pesada e utilização excessiva de compostos
químicos) é uma ameaça muito grande sobre os solos, e está em expansão tendo em
conta as crescentes necessidades da humanidade (Brilha, 2005).
Atividades militares
As atividades militares (treino e ações bélicas) ocorre muitas vezes em
locais sensíveis quer para a geodiversidade, quer para a biodiversidade. O uso
de maquinaria pesada e de material bélico contribuem para o aumento de erosão
dos solos e a utilização de munições podem ter consequências negativas para os
solos e na qualidade da água superficial e subterrânea (Brilha, 2005).
As atividades recreativas e turísticas
O desenvolvimento do setor dos serviços na humanidade, nomeadamente as
actividades recreativas e turísticas, também podem colocar a geodiversidade e a
biodiversidade sob grande pressão, e como exemplo, serve a utilização de meios
de transporte como viaturas todo o terreno em locais sensíveis e solos frágeis.
Também visitas a grutas e atividades de escalada em certas áreas pode destruir
as frágeis estruturas cársicas ou estabilidade da própria escarpa,
respetivamente (Brilha, 2005).
A colheita de amostras geológicas para fins não científicos
Paradoxalmente, aquilo que nos permite conhecer melhor o mundo, também
ajuda a destrui-lo, pois tal como Brilha indica “a formação de novos minerais,
fósseis e rochas decorre a uma velocidade extremamente lenta à escala humana”
já “a taxa de colheita de amostras é infinitamente superior à sua
reconstituição” (Brilha, 2005:47)
A iliteracia cultural
Por último, Brilha (2005) alude a um grande problema que é a falta de
informação numa sociedade apelidada da informação, pois paradoxalmente não há
consciência crítica para a postura de geoconservação por quase toda a
sociedade, inclusive dentro da classe dos geólogos. Assim é necessário
introduzir estes temas na sociedade para que esta possa repensar algumas das
acessões preconcebidas e refundá-las com outros valores.
Para concluir, refiro uma ideia que considero importante, se o Homem
aspirar a travar o desequilíbrio ecológico, para o qual nas últimas décadas tem
contribuído grandemente, terá de passar a olhar a Natureza como um todo,
respeitando os seus componentes geológicos e biológicos e a encarar a sua
conservação como uma nobre causa de todos os da sua espécie.
Partilho abaixo convosco dois vídeos extremamente interessantes acerca da
geodiversidade em Portugal, e aguardo comentários.
Vídeo Geoportugal 1
Vídeo Geoportugal 2 - https://www.youtube.com/watch?v=zJofmjPTeNU
Referências bibliográficas
Brilha, José (s.d.1). Património
geológico: um novo modo de entender a conservação da natureza. IV Jornadas
internacionais de Vulcanologia da Ilha do Pico. Acedido a 04.05.2013 em
http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/4892/1/pico.pdf
Brilha, José (s.d 2). A geoconservação e
a educação para a sustentabilidade. Paisagens educativas. Acedido a 04.05.2013
em http://www.aspea.org/18ResumoGeoconservacao.pdf
Brilha, José. (2005) Património
Geológico e Conservação: A Conservação da Natureza na sua Vertente Geológica.
Braga: Palimage Editores. Disponível em
http://www.dct.uminho.pt/docentes/pdfs/jb_livro.pdf. Acedido a 6 de Maio de
2013.
Castro, I. (2006). Geodiversidade e seu Valor Educativo – Estudo de casos em contexto
europeu. Dissertação de mestrado. Porto: Faculdade de Ciências da
Universidade do Porto.
Declaração de Digne – Declaração Internacional
sobre os Direitos da Memória da Terra. 1991. Acedido a 13.05.2013 em
http://www.progeo.pt/pdfs/direitos.pdf
Gray,
Murray (2004). Geodiversity valuing and conserving abiotic nature. John Wiley
& Sons, Ltd, England. Disponível em: http://geoduma.files.wordpress.com/2010/02/geodiversity.pdf.
Acedido a 12 de Maio de 2013.
Gray,
Murray (2005). Geodiversity and Geoconservation: What, Why, and How?. The
George Wright Forum. V.L. Santucci (Ed.). Volume 22, N.º 3, 4 – 12.
Nieto,L. M. (2001). Geodiversidad:
propuesta de una definición integradora. Boletín Geológico y Mineiro, 112, 3 –
12.
Pereira D., Brilha J., Pereira P.,
(2008). Geodiversidade valores e usos. Braga: Universidade do Minho. Acedido a
11.05.2013 em http://www.dct.uminho.pt/docentes/pdfs/jb_pereiras
Sharples, C. (2002). Concepts and
principles of geoconservation. Acedido a 12.05.2013 em
http://www.dpiw.tas.gov.au/inter.nsf/Attachments/SJON-57W3YM/$FILE/geoconservation.pdf
Silva, Cassio Roberto da (2008).
Geodiversidade do Brasil: conhecer o passado, para entender o presente e prever
o futuro. PlanetaTerra: Ciências da Terra para a Sociedade. Rio de
Janeiro: CPRM
Stanley, Mick.
(2004). Geodiversity – linking people, landscapes and their culture. In Natural
and Cultural Landscapes. The Geological Fundation, M. A.
Vídeo 1. Geoportugal 1. Acedido a
15.05.2013 em
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=MFtqXAn8VN0
Video2. Geoportugal 2. Acedido a
15.05.2013 em https://www.youtube.com/watch?v=zJofmjPTeNU
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